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terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Despotismo de Guerra nas Estrelas e o Populismo de Jornada nas Estrelas

David Brin

A mitologia futurista elaborada por George Lucas está difundindo uma visão elitista e antidemocrática sob o disfarce de diversão escapista, em tudo diferente do universo em que navega a espaçonave Enterprise.



Este artigo é de autoria do físico e escritor David Brin, autor de O Carteiro (The Postman), Maré Alta Estelar (Startide Rising), A Guerra da Elevação (Uplift War), Fundação – O Triunfo (Foundation’s Triumph) e outros clássicos da Ficção Científica. Foi escrito em 1999, por ocasião do lançamento do Episódio I de Guerra nas Estrelas. A versão em português foi publicada originalmente na Folha de São Paulo, de domingo, 4 de julho de 1999, caderno Mais!, páginas 8 e 9 e também pode ser lida no Centro de Mídia Independente, desde fevereiro de 2004.


“É provável que não exista nenhuma forma de governo que seja melhor do que o despotismo benévolo.”

George Lucas, a The New York Times (março de 1999)

Eu, pessoalmente, boicotei Guerra nas Estrelas – Episódio I – A Ameaça Fantasma durante uma semana inteira.

Por quê? O que existe no filme que mereça ser boicotado? Afinal, Guerra nas Estrelas (Star Wars) não é apenas uma obra de ficção científica divertida? Algumas pessoas a definem como “doce para os olhos” – uma chance de voltar à infância e passar duas horas longe das preocupações normais da idade adulta, vivendo num universo onde a distinção entre o bem e o mal é traçada de maneira inequívoca, sem todas as distinções inconvenientes que pontilham a vida diária das pessoas.

Você está com um problema? Sem problemas! É só cortá-lo ao meio com um sabre de luz. Você não adoraria, pelo menos uma vez na vida, poder penetrar na maior fortaleza de seu pior inimigo numa nave veloz e desencadear uma reação em cadeia, explodindo a estrutura inteira desde seu podre interior, enquanto você mesmo foge, em segurança, à velocidade da luz? A idéia é tão sedutora que se repete em três dos quatro filmes da série Guerra nas Estrelas.

Ganho a vida razoavelmente bem escrevendo livros e roteiros de filmes de ficção científica. Logo, Guerra nas Estrelas deveria ser um prato cheio para mim, certo?

Um dos problemas do chamado entretenimento descomprometido de hoje é que de algum modo, em meio a todos os efeitos especiais espetaculares, as pessoas tendem a perder de vista coisas simples como trama e sentido. Elas deixam de tomar nota das lições morais que o diretor está tentando transmitir. Mas essas coisas são importantes.

Já está bastante claro que George Lucas tem uma pauta de prioridades ideológicas que defende e que a leva muito a sério. Depois de quatro [atualmente cinco] filmes da série Guerra nas Estrelas, esse é um fato que já deveria ter sido percebido, mesmo por quem não vai ao cinema com o intuito de identificar a moral dos filmes. Quando a principal característica que distingue o “bem” do “mal” é até que ponto cada personagem é ou não bonitinho, existe um indicativo de que talvez valha a pena reavaliarmos a saga inteira.

Exatamente que produto nos está sendo vendido entre um take e outro?

1) As elites têm o direito inerente de governar de maneira arbitrária. Os cidadãos comuns não precisam ser consultados. Podem escolher apenas a elite que vão seguir.

2) As elites “boas” devem agir com base em seus caprichos subjetivos, independentemente de provas, argumentos ou responsabilidades.

3) Qualquer pecado pode ser perdoado se quem o cometeu for suficientemente importante.

4) Os verdadeiros líderes já nascem líderes. É uma coisa genética. O direito de governar é herdado.

5) Emoções humanas justificadas podem fazer uma pessoa boa virar má.

Esse é apenas o começo da longa lista de lições “morais” que são promovidas incansavelmente por Guerra nas Estrelas. São lições que diferenciam completamente essa saga de outras que, à primeira vista, podem dar a impressão de lhe serem semelhantes, como Jornada nas Estrelas.

Nunca gostei, sobretudo, de toda a coisa nietzschiana do Übermensch (Super-homem): a idéia (subjacente a muitos mitos e lendas) de que uma história, para ser boa, precisa ter como sujeito semideuses que são muito maiores, piores e melhores do que os comuns mortais. Trata-se de uma tradição de narrativas que vem da Antiguidade, e que acho odiosa na obra de A. E. Van Vogt, E. E. Smith, L. Ron Hubbard e qualquer outro autor no qual se vêem superseres decidindo o destino de bilhões de pessoas sem nunca parar para levar em conta quais seriam as vontades delas.

Você dirá: “Uau! Se seu ponto de vista com relação a esse assunto é tão contundente, por que fazer um boicote com duração já prevista de apenas uma semana? Para que assistir ao último filme Guerra nas Estrelas?”. Porque sou forçado a reconhecer que histórias sobre semideuses encontram eco profundo no coração humano.

Antes de passarmos para coisas divertidas, tenha um pouco de paciência comigo – quero falar a sério um pouquinho.

Em O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell mostrou como praticamente toda cultura antiga e pré-moderna utilizava uma técnica ritmada própria para contar histórias, retratando os protagonistas e antagonistas com certas motivações e traços de personalidade constantes, num padrão que transcende as fronteiras de língua e cultura.

Nessas narrativas clássicas o herói começa relutante, mas há augúrios e sinais que antevêem sua grandeza predestinada. Ele recebe conselhos sábios de um mentor, ganha companheiros inesperados, porém leais, enfrenta uma série de crises cada vez mais críticas, explora o poço de seus próprios medos e emerge vitorioso, levando a vitória ou o talismã de volta a sua tribo, seu povo ou sua nação, que o admira profundamente.

Ao lançar luz sobre essa tradição venerada dos contadores de histórias, Campbell de fato trouxe à tona alguns traços espirituais que parecem ser comuns a todos os humanos. E sou o primeiro a admitir que é uma fórmula fantástica.

Campbell, infelizmente, destacou apenas qualidades positivas, ignorando por completo um lado muito mais sombrio – como, por exemplo, esse modelo padronizado de fábula acabou sendo cooptado por reis, sacerdotes e tiranos que o utilizaram para tecer loas à importância suprema das elites que se erguem acima dos homens e das mulheres comuns. Ou, então, a idéia implícita de que devemos sempre nos restringir a traçar variações sobre uma única história, um único tema, repetindo à exaustão a mesma trama previamente prescrita.

Aqueles que elogiam Joseph Campbell parecem enxergar nessa uniformidade um motivo para nos alegrarmos. Mas ela não o é. Na medida em que desempenham um papel importante no trágico atolamento de nosso espírito, os mitos dos semideuses ajudaram a reforçar a mesmice e a imutabilidade durante milênios, imobilizando as pessoas de quase todas as culturas, desde Gilgamesh até os heróis das histórias em quadrinhos.

É essencial compreender o afastamento radical desse padrão que é dado pela ficção científica genuína, que tem suas origens numa tradição literária diametralmente oposta à primeira, formando um novo tipo de narrativa que muitas vezes se rebela contra os arquétipos que Campbell venerava. Trata-se da crença rebelde no progresso, no igualitarismo e na possibilidade de existirem histórias em que todos saiam ganhando – e também na possibilidade, pequena, porém real, de existirem instituições humanas decentes, sem falar no questionamento compulsivo das normas previamente estabelecidas.

Autores como Greg Bear, John Brunner, Alice Sheldon, Frederik Pohl e Philip K. Dick sempre encararam qualquer fórmula narrativa previamente prescrita como um desafio direto. Isso explica por que a ficção científica nunca foi muito bem-vinda nos dois extremos do espectro literário – os livros de histórias em quadrinhos e a “alta literatura”.

Os quadrinhos tratam seus super-heróis com respeito reverente, como a Ilíada retratava os semideuses. Quanto à elite literária, os pós-modernistas desprezam a ficção científica devido à presença da palavra “científica”, enquanto seus colegas mais antigos, profundamente imbuídos da Poética de Aristóteles, vêem como anátema o pressuposto subjacente à maior parte da ficção científica de alta qualidade: a afirmação ousada de que não existem “verdades humanas eternas”.

As coisas mudam, e a transformação pode ser fascinante. Além disso, existe a possibilidade de os nossos filhos nos ultrapassarem. Eles podem nos superar ou podem aprender com nossos erros, deixando de repeti-los. E, se não aprenderem, isso seria uma tragédia que ultrapassaria de longe a definição restrita e míope dada por Aristóteles ao termo.

A Hora Final (On the Beach), No Mundo de 2020 (Soylent Green) e 1984 alcançaram profundidades assustadoras. Admirável Mundo Novo, The Screwfly Solution [sem versão em português] e Fahrenheit 451 postularam questões preocupantes. Contrastando com eles, Édipo Rei é mais ou menos tão interessante quanto observar um peixe fisgado se contorcendo na ponta da linha do pescador. A única coisa que se tem vontade de fazer é matar logo o desgraçado do rei de Tebas, para pôr um fim a seu sofrimento – e encontrar uma maneira de punir aqueles que o atormentaram.

Trata-se de um ponto de vista realmente diferente, que forma uma oposição direta com os credos mais velhos, elitistas, que pregavam a passividade e o respeito imobilizador, encontrados em quase todas as culturas nas quais o trabalho principal do contador de histórias era lisonjear os patrões oligárquicos que punham comida em seu prato.

Imagine-se Aquiles recusando-se a aceitar seu destino predeterminado, agarrando sua espada e saindo à caça das Parcas, exigindo que lhe dessem uma vida longa e gloriosa! Ou Odisseu mandando Agamêmnon e Posêidon às favas e indo juntar-se a Dédalo para fundar uma empresa que produziria cavalos alados e com rodas, em massa, de modo que os mortais pudessem passear pelo ar e pela terra como faziam os deuses – e como fazem os comuns mortais hoje em dia. Mesmo que fracassassem e que os ciumentos deuses do Olimpo os destruíssem, seria uma grande história.

Esse estilo de contar histórias raramente foi visto até algumas gerações atrás, quando os aristocratas perderam parte de seus poderes, a título de castigo por sua irreverência. Mesmo hoje, a perspectiva permanece incerta – e muitos a acham, além disso, menos romântica. Quantos dramas não retratam os cientistas como “loucos”? Quão poucos filmes modernos mostram as instituições americanas funcionando bem a ponto de justificar que alguém se dê ao trabalho de tentar reparar suas deficiências? Não surpreende que George Lucas anseie publicamente pela pompa de reis poderosos, preferindo-a à responsabilidade sem graça assumida pelos presidentes. Muitos compartilham sua crença de que as coisas seriam bem mais interessantes sem a interminável e cansativa argumentação e negociação que compõem uma parte tão grande da vida moderna.

Como seria bom se alguém assumisse o comando! Se aparecesse um líder!

Algumas pessoas perguntam de que adianta procurar lições profundas numa obra de entretenimento inofensiva e escapista. Para outras, a saúde moral de uma civilização pode ser avaliada por sua cultura popular.

Na era moderna, temos a tendência a pensar que idéias são coisas que não podem ser inerentemente nocivas. No entanto, quem pode negar que as pessoas, especialmente as crianças, acabam sendo afetadas por mensagens que são repetidas com freqüência suficiente? É quando uma “lição” é repetida de maneira implacável que até os céticos deveriam começar a tomar nota do que está sendo feito.

As mensagens morais transmitidas por Guerra nas Estrelas não são mero enfeite. Cada um dos filmes da série é repleto de discursos e aulas. Eles representam uma pauta ideológica.

Será que poderemos aprender mais sobre a visão de mundo expressa em Guerra nas Estrelas se traçarmos uma comparação entre o épico de aventura espacial idealizado por George Lucas e seu principal concorrente, Jornada nas Estrelas (Star Trek)?

À primeira vista, as diferenças entre os dois parecem ser superficiais. Uma saga contém uma pequena temática ligada à força aérea (caças minúsculos), enquanto a outra é naval. Em Jornada nas Estrelas, a grande nave é heróica e o esforço cooperativo necessário para mantê-la funcionando é retratado como sendo honroso.

De fato, Jornada nas Estrelas vê a tecnologia como algo útil e, em essência, amigo do homem, apesar de por vezes ser também perigoso. A educação é o grande fator de emancipação dos humildes (exemplo: a Academia Starfleet). As instituições futuristas são basicamente benévolas (é o caso da Federação), se bem que, naturalmente, é preciso combater casos de incompetência e corrupção. O profissionalismo é respeitado, personagens menores têm um papel importante a cumprir e subordinados muitas vezes se transformam em líderes – como acontece nos EUA de hoje.

Em Jornada nas Estrelas, quando as autoridades são desafiadas, isso é feito visando superar os erros delas ou expor vilões específicos, e não com o intuito de retratar todas as instituições como sendo, por natureza, casos perdidos. Bons policiais às vezes atendem um pedido de socorro. Ironicamente, essa imagem fomenta a crítica construtiva à autoridade, na medida em que sugere que qualquer um de nós pode ter acesso a nossas instituições falhas se tivermos vontade suficiente – e, talvez, até mesmo consertá-las, com as ferramentas da cidadania resoluta.

Contrastando com isso, os rebeldes oprimidos de Guerra nas Estrelas não podem recorrer à lei, aos mercados, à ciência ou à democracia. Podem apenas escolher que partido tomar numa guerra civil que opõe duas alas de uma mesma família real, geneticamente superior a eles. Não podem interferir nem criticar. Como os carregadores de lanças homéricos, esse não é seu papel.

Para nos ensinar como distinguir o bem do mal, Lucas dita que se deve avaliar pela aparência. Os vilões usam capacetes nazistas. Eles fazem cara feia ou têm olhos que brilham vermelhos. As histórias de Jornada nas Estrelas, ao contrário, muitas vezes aconselham que não se julgue um livro por sua capa. Acima de tudo, Jornada nas Estrelas, de modo geral, apresenta heróis que são apenas cerca de dez vezes mais brilhantes, nobres e heróicos que uma pessoa comum. Eles conseguem seu intento por meio da cooperação e da inteligência, e não por possuírem alguma grandeza transcendente e inerente que os aproxime da condição divina.

Sim, é verdade que Jornada nas Estrelas às vezes soa politicamente correto a ponto de ser cansativo, parecendo estar sempre pregando um sermão. Os episódios de Jornada nas Estrelas na TV em muitos casos acabaram por quase virar telenovelas. Muitos dos filmes foram muito mal escritos. Apesar disso, Jornada procura tratar de questões reais, conferindo vozes complexas até mesmo a seus vilões e formulando perguntas difíceis sobre as armadilhas que poderemos enfrentar na nossa busca do futuro.

Em todo caso, quando se trata de retratar o destino humano, onde você preferiria viver, supondo que fosse um cidadão comum e não um semideus? Na Federação de Roddenberry ou no Império de George Lucas?

Lucas defende sua visão elitista, tanto assim que declarou ao The New York Times: “É mais ou menos por isso que afirmo que um déspota benévolo é o governante ideal. Ele consegue realizar coisas, de fato. A idéia de que o poder corrompe é muito verdadeira, e o ser humano que consegue superar essa armadilha é um ser humano verdadeiramente grandioso”.

Ou seja: uma figura real ou um semideus, ungido pelo destino (como um cineasta bilionário, por exemplo?)

Lucas freqüentemente diz que somos uma cultura triste, destituída da confiança ou da inspiração que podem ser conferidas pela presença de líderes fortes. Mas não é fato que somos a cultura que gerou George Lucas e lhe ofereceu tantas oportunidades? Não somos justamente a sociedade que gerou todos os especialistas brilhantes que ele contrata – pessoas ousadamente criativas que aplicam sua inspiração individual e sua habilidade cooperativa nos filmes do próprio Lucas? Uma cultura que desafia o velho impulso de homogeneização, ao reverenciar a excentricidade e demonstrar uma sede inusitada pelo diferente, o inovador e o estranho? De que modo se pode afirmar que falta confiança a essa civilização?

A verdade histórica é que todos os déspotas da história, juntos, não conseguiram “realizar coisas” tão bem quanto esta civilização desordenada e autocrítica composta de cidadãos livres e soberanos, que finalmente se libertaram da adoração à classe governante e começaram a pensar por si mesmos. A democracia pode, às vezes, parecer frustrante e bagunçada – mas funciona.

Isso dito, quero reconhecer novamente que Guerra nas Estrelas remete a um arquétipo antigo e muito profundamente humano. Quem ouviu Homero recitar a Ilíada ao lado de uma fogueira de acampamento conheceu o drama em toda sua grandiosidade. Aquiles podia matar mil homens com um toque de sua mão – assim como Darth Vader assassina bilhões de pessoas apertando um botão –, mas nenhuma dessas baixas tem importância quando comparada à saga pessoal do grandioso herói.

Em A Ameaça Fantasma (The Phantom Menace), Lucas quer que gostemos de um garotinho loiro e bonitinho que, mais tarde, vai crescer e assassinar a população da Terra multiplicada várias vezes. Já que o estamos fazendo, por que não tiramos da gaveta o álbum de fotos da família Hitler, para podermos achar lindas as fotos do pequeno Adolf, tão fofinho e adorável, e nos maravilharmos com suas proezas infantis? Também ele foi inocente até o momento em que optou pelo “lado escuro” – logo, vamos adorá-lo!

É verdade que Lucas não tenta desculpar essa piada macabra, dizendo “é apenas um filme”. Em lugar disso, nos apresenta sua saga como se fosse uma tragédia grega repleta de angústia e digna de Édipo. Mas, se fosse verdade, será que Guerra nas Estrelas já não nos teria oferecido uma visão do Lado Escuro que fosse além de uma simples caricatura? Heróis e vilões não seriam diferenciados simplesmente por sua beleza. Os dilemas morais não pareceriam saídos de um livro de histórias em quadrinhos.

Não entre nessa! A apoteose de um assassinato em massa é exatamente o que parece ser. Deveríamos achá-la assustadora.

Alguém se lembra da cena final de O Retorno de Jedi, na qual Luke olha para dentro do fogo e vê Obi-Wan, Yoda e Vader sorrindo nas chamas? Eu me vi esperando que fosse o inferno dos Jedi, pela quantidade de dor que esses três provocaram em sua galáxia e por todas as mentiras que contaram. Mas esse sou eu, alguém que se rebela contra Homero, Aquiles e toda essa tradição. No íntimo, alguns de vocês também são assim.

Não se trata de uma distinção que se apresenta apenas uma vez. Ela marca a principal linha divisória entre a ficção científica real, letrada e humanista, a ficção especulativa, e a maior parte da suposta “ficção científica” que se vê nos cinemas hoje.

A diferença não é questão, realmente, de complexidade, infantilidade, ingenuidade científica ou estilização literária.

A diferença subjacente é que uma tradição se compraz na existência de elites, enquanto a outra se rebela contra elas. Na visão de mundo da ficção científica genuína, os semideuses não são facilmente perdoados quando mentem e matam. O desprezo pelas massas já saiu de moda. Pode haver heróis, até mesmo heróis grandiosos, mas, a longo prazo, ou vamos avançar juntos ou, simplesmente, não vamos avançar.

É verdade que esse tipo de mito vende bem. Sim, mesmo depois de gerações inteiras se rebelarem contra o arquétipo homérico, nós, os filhos de Péricles, Benjamin Franklin e H. G. Wells ainda somos uma minoria. Tanto isso é fato que Lucas consegue tomar posse dos termos e dos símbolos que criamos à mão – nossos amados robôs e naves espaciais – para promover suas próprias finalidades – e ainda ser elogiado por sua “originalidade”.

O maior defeito moral do universo de Guerra nas Estrelas consiste num ponto que Lucas pisa e repisa, na voz de seu personagem-guru sábio, Yoda.

Vamos ver se acerto. O medo deixa você bravo, e a ira torna você mau, é isso?

Reconheço sem pestanejar que o medo tem sido um dos maiores fatores motivadores da intolerância na história humana. Posso visualizar os candidatos a cavaleiros aprendendo a controlar seu medo e sua ira, como vimos, de maneira digna de crédito, em O Império Contra-Ataca. A calma faz de você um guerreiro melhor e previne erros. A ira constante pode prejudicar o bom julgamento. Essa parte é totalmente digna de crédito.

Mas, a seguir, em O Retorno de Jedi, Lucas pega essa sabedoria básica e a perverte, dizendo: “Se você ficar irado – mesmo que o que provoque sua ira sejam a injustiça e o assassinato –, então sua ira vai, automática e imediatamente, transformar você numa pessoa totalmente má. Todas as suas opiniões e posturas políticas serão invertidas de uma hora para outra. Até mesmo a lealdade será abandonada, e seus amigos não vão conseguir trazer você de volta ao bom caminho. Você vai juntar-se imediatamente a seu inimigo jurado, tornando-se o amigo ou aprendiz dele. E tudo isso porque você se permitiu sentir ira diante dos crimes dele”.

Como é mesmo? Daria para repetir tudo outra vez, bem devagar?

Quer dizer que, em outras palavras, sentir ira diante de Adolf Hitler vai levar você a sair correndo e filiar-se ao partido nazista? Peraí, George. Você poderia me dar um único exemplo em que isso já aconteceu? Um só?

Essa afirmação já é uma coisa bastante má de defender. E, sobretudo, é burrice pura e simples.

Ela levanta uma pergunta que alguém deveria haver formulado já há muito tempo. Quem foi que encarregou George Lucas de pregar essa moralidade superficial e doentia a nossas crianças? Se é “apenas um filme”, por que ele está se esforçando tanto para encher seus filmes com esse lixo todo?

Acho que está na hora de optar, pessoal. Esta saga não é apenas mais uma expressão do arquétipo homérico, exaltando as velhas hierarquias de príncipes, magos e semideuses. Ao erguer como sua peça-chave a romantização de um assassino em massa, Guerra nas Estrelas já foi muito além disso. A saga é indigna de nossa atenção, de nosso entusiasmo – e de nossa civilização.

O próprio Lucas nos dá uma pista quando diz “muito tempo atrás, numa galáxia muito distante”.

É isso mesmo. Guerra nas Estrelas pertence a nosso passado sombrio. Faz parte de uma longa e tirânica era de medo, ausência de lógica, despotismo e demagogia que nossos antepassados se esforçaram tremendamente para superar e da qual estamos, finalmente, começando a sair, assistidos pelo espírito científico e igualitário ao qual Lucas dedica um desprezo tão evidente – espírito esse que devemos encorajar em nossos filhos, se quisermos que eles tenham alguma chance de progredir.

Não prevejo ganhar essa discussão em qualquer momento do futuro próximo. Como observou Joseph Campbell, com razão, os costumes de nossos ancestrais mexem com nossa alma de maneiras que muitas pessoas acham romanticamente atraentes, até irresistíveis. Algumas pessoas não conseguem deixar o conto de fadas de lado e passar para leituras mais maduras. Por enquanto, pelo menos, não conseguem.

A longo prazo, porém, a história está do meu lado. Está, porque o rumo do destino humano não será definido no passado. Será decidido em nosso futuro.

E o futuro é meu campo de ação – se bem que, na verdade, ele pertença a todos vocês. A todos nós.

O futuro é o lugar onde nossa posteridade vai florescer.

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